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Artigo: O amigo que todos queriam ter

Abu lembra muito o pai, cuja memória venera, na observância de alguns ritos

Luiz Eduardo Viana Coelho

Por Fernando Dourado Filho, de São Paulo (SP)

Quando lhe dediquei o livro “Nos passos de Fiszel Czeresnia e outras estórias” com essas palavras, eu bem sabia o que estava dizendo. Conheci Luiz Eduardo Viana Coelho (foto) quando ele tinha uns 14 anos, e eu 24. Foi na fazenda Nova Terra, no oeste baiano, região onde a família criava gado. Na ocasião, eu era casado com uma prima sua e nunca esquecerei as atenções daquele adolescente rechonchudo e engraçado, que não se intimidava diante das montarias seladas que os vaqueiros traziam para percorrer o pasto. Mal sabia, então, que logo ele viria morar em São Paulo para estudar, deixando para trás o eixo Petrolina-Salvador em que crescera. Aqui na capital, recebia-o frequentemente em meu apartamento das Perdizes, juntamente com outros primos, que lá se reuniam para um almoço festivo, entremeado de relatos de minhas viagens ao mundo, feito ainda raro no começo dos anos 1980.

Da imensa família Coelho, nucleada em Petrolina, no médio São Francisco, só colhi afetos. Quarenta anos depois de conhecê-los, sinto-me ligado a dezenas de seus membros que, dia após dias, testemunham de uma amizade inarredável. Com Duca – é assim que o chamam –, contudo, floresceu uma amizade fraterna. Filho mais novo dos nove filhos e filhas de D. Cléa e do lendário Zé Coelho, este já falecido, meu amigo foi o que no Nordeste se chama de “ponta de rama”, alcunha carinhosa para os filhos temporões. Se são agraciados, em parte, pelos cuidados dos mais velhos, é também certo que estão fadados a ser vistos como o último elo da sociedade patriarcal. Assim sendo, logo aprendem que nada será fácil em seu caminho. E que toda e qualquer conquista que perpetrem vida afora, por meritória que seja a motivação, cobrar-se-lhe-á, invariavelmente, o pedágio de origem. Afinal, vem do caçula, estigma eterno.

Mas foi apesar disso, ou justamente graças a essa natureza resiliente, um traço sertanejo da família vicejada na perseverança, que meu irmão Abu – é assim que o chamo, em homenagem aos traços levantinos e ao tirocínio nos negócios – foi se reinventando ano após ano. E isso engendrou surpreendentes dicotomias. Pois sendo de todos o mais aferrado à terra, em todos os sentidos, é por paroxismo, um “globe-trotter” inspirado. Nessa toada, já percorremos meio mundo pelo prazer de viajarmos juntos, pela fome de aprendizado continuado que nos move e, como não, para conhecermos as variedades de mangas que ele se esmera em cultivar à margem do Velho Chico. Assim sendo, já não saberia enumerar nossos passos mundo afora: Hong Kong, Tailândia, Vietnã, Cambodja, Peru, Argentina, Marrocos, Portugal, França, Alemanha, Holanda, Turquia e Israel foram apenas alguns desses palcos.

Disciplinado, perdeu peso e me deixou só no mundo dos gordos. Casado com Edna, companheira talhada sob medida para irradiar um halo de luz à sua volta, Abu lembra muito o pai, cuja memória venera, na observância de alguns ritos. Domingo pela manhã, por exemplo, não abre mão do “Globo Rural”. À mesa, é apurado gourmet e desenvolveu um paladar especial para os vinhos. Não faz viagem sem se inteirar previamente de todas as injunções políticas que permeiam o destino e é arguto observador do cenário interno. Cioso de sua vida espiritual, celebra uma fé sólida que se robusteceu nos anos morados em Salvador. Tampouco lhe faltará tempo para os amigos, viga mestra do ideário de vida paterno, que os cultivava como orquídeas raras. De correção extremada nos negócios, presta conta de cada centavo de forma quase obsessiva e exsuda aquela honestidade que parece hoje caída em desuso.

O leitor perguntará: mas a que se devem palavras tão candentes ao apagar das luzes da semana? A algumas razões. A primeira delas é que ele fez aniversário recentemente e não pudemos estar juntos desde então em função de minhas viagens e encargos profissionais. A segunda é porque nunca se sabe o dia de amanhã e não queria morrer sem que ele soubesse como o vejo e o quanto o considero. A terceira é porque a ninguém devo tanto em conselhos e estímulos. Apesar de mais novo, a propalada experiência dos que tiveram que forjar sua picada a facão, fez dele um homem precocemente sábio nas ponderações e perspicaz na análise das idiossincrasias do ser humano, o que vale dizer em todas as suas glórias e misérias. Por tudo isso e muito mais, reitero com prazer que Abu é o amigo que todo mundo gostaria de ter. Longa vida ao amigo, a Edna, à sua mãe, às amadas irmãs e irmãos.

Quando penso nele, me vem o grande Jacques Brel: “Il y a en a qui ont le coeur si large, qu´on  ne voit que la moitié”. Tem gente que tem o coração tão grande que só conseguimos ver-lhe a metade. ( Fonte/ Amanhã).

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